Por Yaskara Donizeti Manzini
UNICAMP/IA/PPGA
A pessoa leiga quando se refere ao sambista, quase que automaticamente pensa cenas de um desfile de escola de samba. Se procurar num dicionário o significado de Sambista encontrará: “1. que ou aquele que samba, que é exímio dançarino de samba, sambeiro; 2.compositor de sambas; 3. que ou aquele que tem atividades ligadas a escolas de samba; integrante ou freqüentador de escolas de samba” , mas ouso responder que é mais: é possuir raízes, história, ancestrais, ter Pavilhão.
As raízes do samba são enxertadas por múltiplas informações que se recriam. A referência à raiz tem haver com o senso de memória épica da diáspora africana, quando reportamos ou saudamos nossos ancestrais, os atualizamos, trazendo-os à vida através da memória. Não são exemplos a serem apenas seguidos, mas suas experiências guiam as novas gerações sugerindo possibilidades de (re)criações por parte destas. A memória épica esta extremamente ligada à tradição oral e preparação do performer da comissão de frente.
O Pavilhão de maneira concreta é a bandeira que a escola ostenta, seu símbolo. Todo pavilhão possui medida padrão, deve constar o nome, o símbolo, a data da fundação e ser bordado nas cores da escola. Representa o âmago da escola, sua história, é transcendente e imanente simultaneamente. Transcendente porque passamos, morremos, e ele continua ostentado, quiçá, até a o último sambista expirar, mas imanente porque é a própria identidade da escola, nada acontece sem ser por e para ele, impregna e contamina o cotidiano vivido, é o sambista, o elemento de coesão e catalisador das pessoas que freqüentam a escola de samba. Há um samba alusivo da A.C.S. Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco, que entoa:
“Esse é o meu pavilhão!
É a minha vida, é o meu manto!
Pois neste coração, pulsa só Camisa Verde e Branco.
A força do sangue que corre em minhas veias,
Faz a minha vida florescer...
Foi lá, que eu aprendi a ser poeta,
Ter malandragem discreta, este é o meu jeito de ser...”
Na época do desfile dos cordões, um Baliza abria o cortejo, usando seu bastão para vários malabarismos, mas também para defesa do Pavilhão, com o crescimento do número de cordões e aparecimento das primeiras escolas de samba na Paulicéia, outros personagens foram incorporados ao desfile, os Batedores ou Bastedores, que vinham em corredor ao lado do Pavilhão, com pedaços de pau em forma de lança, para defender o pavilhão nos embates (Von Simson, 2007). Por que citei os desfiles da primeira metade do século XX?
Suponho que um dos elementos que constitui a escolha do performer ou componente da ala Comissão de Frente, para a Camisa Verde e Branco tem haver com estes personagens singulares dos desfiles de outrora.
Quando entrei na Camisa Verde e Branco, como coreógrafa, a ala Comissão de Frente era formada por homens, negros, fortes e altos, e, com o conflito pela mudança de coreógrafa e consequentemente na forma de trabalho dos componentes para o carnaval, houve um esvaziamento no grupo. Porém, a Diretoria da Escola deixou bem nítido para mim que trouxesse ou convidasse rapazes para a ala, desde que fossem altos, fortes e preferencialmente negros. Desde 2001, a altura mínima exigida para fazer os testes para compor a ala é de 1,80m., portanto, diferente do teatro ou da dança, existe um padrão físico para compor a ala.
Outra característica peculiar é que os componentes fazem parte da comunidade, diferente de outras escolas de samba, a Camisa Verde e Branco, prefere construir seu grupo a contratar artistas profissionais para se apresentarem nesta ala. O componente da ala tem de ter tempo disponível não somente para dedicar-se aos ensaios que antecedem o desfile, mas participar do cotidiano da escola em eventos, comemorações e festas durante o ano.
A Comissão de Frente não possui desempenho apenas na avenida, mas existem outros desempenhos dentro de quadra, portanto performances sociais e artísticas, que se entrelaçam. Ambas exigem um distanciamento de si mesmo e a consciência de se estar “representando um papel”, porém nas performances artísticas também é exigido um alto grau de destreza corporal.
As performances sociais acontecem nos ritos de quadra e festas das escolas de samba, a Comissão de Frente, nestas ocasiões, deve guardar o Pavilhão da Escola, bem como os Pavilhões das escolas co-irmãs, recepcionando-os, escoltando-os em sua chegada a quadra, ou seja, preservam, de maneira atualizada, o papel de guardiões do Pavilhão, tal qual o Baliza e os Batedores do passado.
O repertório gestual dos performers, nestas apresentações, não é preparado previamente, somente os deslocamentos no espaço, cabendo a cada integrante criar e estabelecer seu repertório de movimentos, respeitando as convenções, mas não há uma preparação corporal, enquanto treinamento de ações físicas. A preparação dá-se no cotidiano com os “mais velhos”do samba, nas barracas, quando se bebe cerveja e ouvem-se histórias de outros carnavais, das raízes do samba, é deste aprendizado que (re)criam-se gestos e comportamentos, a partir da memória de bambas.
É no conhecimento transmitido de boca a orelha, no experienciado pelas e com as gerações anteriores, que se dá uma grande parte da preparação do performer da comissão de frente, são nestes momentos que a perspectiva puramente estética da ala no desfile se desfaz, refaz e toma outro sentido para o performer e também para a comunidade. Dois depoimentos de componentes refletem esta observação:
“Ser Comissão de Frente pra mim não se resume apenas ao carnaval, é algo que mudou minha vida, não apenas entrei num grupo, entrei numa nova família, uma família que defende com unhas e dentes seu bem maior, que é o nosso Pavilhão”.
Ednilson N. Martiniano (componente desde 2005)
“Dentro da comissão pude ter acesso a toda a história da Camisa Verde, seus baluartes, suas figuras históricas, sua tradição e principalmente a sua cultura [...] Esforçamonos para sermos muito mais do que meros corpos para apresentação, mas também cabeças pensantes e conscientes sobre a diáspora negra”.
Pérsio B. J. Silveira (componente desde 2001)
Dois momentos permeiam o processo de criação e ensaios das performances artísticas, o primeiro é mais intimista, privado, compreende desde exercícios físicos para fortalecimento de partes específicas do corpo, exercícios de resistência aeróbica (a comissão atua e canta simultaneamente), dança, jogos teatrais e improvisações, até a amarração de cenas ou coreografia a ser apresentada; e o segundo tem haver com fatores técnicos do desfile: tempo e espaço, nosso segundo espaço de ensaio é a rua.
Ensaiar na rua é uma experiência singular, apesar do propósito ser a medição do tempo e distância que o grupo deve percorrer, o grupo interfere no cotidiano de espaços públicos, e os performers ficam expostos a atropelamentos, xingamentos ou aplausos dos moradores da rua na qual ocorre o ensaio, abordagem de bêbados, inclusive batida policial, por exemplo. Durante o ensaio, o performer tem de estar oscilando entre seu corpo cotidiano e o artístico. A rua é concretamente um topos de turbulência, de recolhimento e expansão corporal simultaneamente, de territorialização, desterritorialização e reterritorialização do corpo, seus movimentos e do espaço (corporal e físico). Tais oscilações tornam as repetições nas evoluções únicas e diáfanas, mas é no perigo, no risco destes ensaios, que movimentos emergem e são ou não assimilados e
compartilhados pelo grupo. Quando o trabalho da comissão tende a teatralização, as descobertas são assimiladas para aquele personagem específico, quando o trabalho tende a formalização é experimentado na partitura coreográfica.
As preparações para as performances, comportam também ações cotidianas: churrascos, jogos de futebol, mesas de bares e discussões diversas. São nestas reuniões que cada performer vai conhecendo e reconhecendo no companheiro de ala micro-movimentos sígnicos, clichês corpóreos cotidianos, o modo de estar no mundo do outro.
É no emaranhado da vivência cotidiana, do comportamento restaurado através da memória de bambas, dos ensaios, das relações de estranhamento, discussão, aceitação e convivência com as singularidades de cada um, que o performer virtualiza, percebe, sente, cria, recria e se potencializa enquanto Comissão de Frente, finalizando o ciclo carnavalesco com a apresentação de seu trabalho, na passarela do samba, atingindo o público que absorve esta força e a transborda em gritos, aplausos e lágrimas.
Bibliografia:
ASANTE, Kariamu Welsh – Commonalities in African Dance: an Aesthetic Foundation. In ASANTE, Molefi Keti & ASANTE, Kariamu Welsh – African Culture: the Rhythms of Unity.
Trenton: Africa World Press, 1996.
CARLSON, Marvin – Performance: a critical introduction. London and New York: Routledge, 1999
VON SIMSON, Olga R. de Moraes – Carnaval em Branco e Negro. Carnaval Popular Paulistano: 1914-1988. Campinas: Editora UNICAMP; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. 389p