domingo, 30 de setembro de 2012

ARTIGO - Um carnaval que não se vê na TV






Por Yaskara Donizeti Manzini 

 UNICAMP/IA/PPGA






A pessoa leiga quando se refere ao sambista, quase que automaticamente pensa cenas de um  desfile  de  escola  de  samba.  Se  procurar  num  dicionário o  significado  de  Sambista encontrará: “1. que ou aquele que samba, que é exímio dançarino de samba, sambeiro; 2.compositor de sambas; 3. que ou aquele que tem atividades ligadas a escolas de samba; integrante ou freqüentador de escolas de samba” , mas ouso responder que é mais: é possuir raízes, história, ancestrais, ter Pavilhão.

As  raízes  do  samba  são  enxertadas  por  múltiplas informações  que  se  recriam.  A referência à raiz tem haver com o senso de memória épica da diáspora africana, quando reportamos  ou  saudamos  nossos  ancestrais,  os  atualizamos,  trazendo-os  à  vida  através  da memória. Não são exemplos a serem apenas seguidos, mas suas experiências guiam as novas gerações  sugerindo  possibilidades  de  (re)criações  por  parte  destas.  A  memória  épica  esta extremamente ligada à tradição oral e preparação do performer da comissão de frente.

O Pavilhão de maneira concreta é a bandeira que a escola ostenta, seu símbolo. Todo pavilhão possui medida padrão, deve constar o nome, o símbolo, a data da fundação e ser bordado nas cores da escola. Representa o âmago da escola, sua história, é transcendente e imanente  simultaneamente.  Transcendente  porque  passamos,  morremos,  e  ele  continua ostentado, quiçá, até a o último sambista expirar, mas imanente porque é a própria identidade da escola, nada acontece sem ser por e para ele, impregna e contamina o cotidiano vivido, é o sambista, o elemento de coesão e catalisador das pessoas que freqüentam a escola de samba. Há um samba alusivo da A.C.S. Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco, que entoa:

“Esse é o meu pavilhão!
É a minha vida, é o meu manto!
Pois neste coração, pulsa só Camisa Verde e Branco.
A força do sangue que corre em minhas veias,
Faz a minha vida florescer... 
Foi lá, que eu aprendi a ser poeta, 
Ter malandragem discreta, este é o meu jeito de ser...”

É na ligação com o Pavilhão que reconheço as origens da Comissão de Frente - apesar do nome comissão de frente ser importado do carnaval carioca, e só ter aparecido enquanto quesito de julgamento em 1968, na Paulicéia.

Na época do desfile dos cordões, um Baliza abria o cortejo, usando seu bastão para vários malabarismos, mas também para defesa do Pavilhão, com o crescimento do número de cordões e aparecimento das primeiras escolas de samba na Paulicéia, outros personagens foram incorporados ao desfile, os Batedores ou  Bastedores, que vinham em corredor ao lado do Pavilhão, com pedaços de pau em forma de lança, para defender o pavilhão nos embates (Von Simson, 2007). Por que citei os desfiles da primeira metade do século XX?

Suponho que um dos elementos que constitui a escolha do performer ou componente da ala Comissão de Frente, para a Camisa Verde e Branco tem haver com estes personagens singulares dos desfiles de outrora.

Quando entrei na Camisa Verde e Branco, como coreógrafa, a ala Comissão de Frente era formada por homens, negros, fortes e altos, e, com o conflito pela mudança de coreógrafa e consequentemente  na forma  de  trabalho  dos  componentes  para  o  carnaval,  houve  um esvaziamento no grupo. Porém, a Diretoria da Escola deixou bem nítido para mim que trouxesse ou convidasse rapazes para a ala, desde que fossem altos, fortes e preferencialmente negros. Desde 2001, a altura mínima exigida para fazer os testes para compor a ala é de 1,80m., portanto, diferente do teatro ou da dança, existe um padrão físico para compor a ala.

Outra  característica  peculiar  é  que  os  componentes   fazem  parte  da  comunidade, diferente de outras escolas de samba, a Camisa Verde e Branco, prefere construir seu grupo a contratar artistas profissionais para se apresentarem nesta ala. O componente da ala tem de ter tempo  disponível  não  somente  para  dedicar-se  aos  ensaios  que  antecedem  o  desfile,  mas participar do cotidiano da escola em eventos, comemorações e festas durante o ano.

A Comissão de Frente não possui desempenho apenas na avenida, mas existem outros desempenhos dentro de quadra, portanto performances sociais e artísticas, que se entrelaçam. Ambas exigem um distanciamento de si mesmo e a consciência de se estar “representando um papel”, porém nas performances artísticas também é exigido um alto grau de destreza corporal.

As performances sociais acontecem nos ritos de quadra e festas das escolas de samba, a Comissão  de  Frente,  nestas  ocasiões,  deve  guardar  o Pavilhão  da  Escola,  bem  como  os Pavilhões das escolas co-irmãs, recepcionando-os, escoltando-os em sua chegada a quadra, ou seja, preservam, de maneira atualizada, o papel de guardiões do Pavilhão, tal qual o Baliza e os Batedores do passado.

O repertório gestual dos performers, nestas apresentações, não é preparado previamente, somente  os  deslocamentos  no  espaço,  cabendo  a  cada   integrante  criar  e  estabelecer  seu repertório de movimentos, respeitando as convenções, mas não há uma preparação corporal, enquanto treinamento de ações físicas. A preparação dá-se no cotidiano com os “mais velhos”do samba, nas barracas, quando se bebe cerveja e ouvem-se histórias de outros carnavais, das raízes do samba, é deste aprendizado que (re)criam-se gestos e comportamentos, a partir da memória de bambas.

É no conhecimento transmitido de boca a orelha, no experienciado pelas e com as gerações anteriores, que se dá uma grande parte da preparação do performer da comissão de frente, são nestes momentos que a perspectiva puramente estética da ala no desfile se desfaz, refaz e toma outro sentido para o performer e também para a comunidade. Dois depoimentos de componentes refletem esta observação:

“Ser Comissão de Frente pra mim não se resume apenas ao carnaval, é algo que mudou minha vida, não apenas entrei num grupo, entrei numa nova família, uma família que defende com unhas e dentes seu bem maior, que é o nosso Pavilhão”. 
         Ednilson N. Martiniano (componente desde 2005)

“Dentro  da  comissão  pude  ter  acesso  a  toda  a  história  da  Camisa  Verde,  seus baluartes, suas figuras históricas, sua tradição e principalmente a sua cultura [...] Esforçamonos para sermos muito mais do que meros corpos para apresentação, mas também cabeças pensantes e conscientes sobre a diáspora negra”.
 Pérsio B. J. Silveira (componente desde 2001)

As preparações para  performances artísticas normalmente começam no fim do ano, depois das definições do enredo, samba enredo e fantasia que a ala vai usar.

Dois momentos permeiam o processo de criação e ensaios das performances artísticas, o primeiro é mais intimista, privado, compreende desde exercícios físicos para fortalecimento de partes  específicas  do  corpo,  exercícios  de  resistência  aeróbica  (a  comissão  atua  e  canta simultaneamente),  dança,  jogos  teatrais  e  improvisações,  até  a  amarração  de  cenas  ou coreografia a ser apresentada; e o segundo tem haver com fatores técnicos do desfile: tempo e espaço, nosso segundo espaço de ensaio é a rua.

Ensaiar na rua é uma experiência singular, apesar do propósito ser a medição do tempo e  distância que o grupo deve percorrer, o grupo interfere no cotidiano de espaços públicos, e os performers ficam expostos a atropelamentos, xingamentos ou aplausos dos moradores da rua na qual ocorre o ensaio, abordagem de bêbados, inclusive batida policial, por exemplo. Durante o ensaio, o  performer tem de estar oscilando entre seu corpo cotidiano e o artístico. A rua é concretamente um topos de turbulência, de recolhimento e expansão corporal simultaneamente, de territorialização, desterritorialização e reterritorialização do corpo, seus movimentos e do espaço (corporal e físico). Tais oscilações tornam as repetições nas evoluções únicas e diáfanas, mas é no perigo, no risco destes ensaios, que movimentos emergem e são ou não assimilados e
compartilhados pelo grupo. Quando o trabalho da comissão tende a teatralização, as descobertas são assimiladas para aquele personagem específico, quando o trabalho tende a formalização é experimentado na partitura coreográfica.

As preparações para as performances, comportam também ações cotidianas: churrascos, jogos de futebol, mesas de bares e discussões diversas. São nestas reuniões que cada performer vai conhecendo e reconhecendo no companheiro de ala micro-movimentos sígnicos, clichês corpóreos cotidianos, o modo de estar no mundo do outro.

É  no  emaranhado  da  vivência  cotidiana,  do  comportamento  restaurado  através  da memória  de  bambas,  dos  ensaios,  das  relações  de  estranhamento,  discussão,  aceitação  e convivência com as singularidades de cada um, que o performer virtualiza, percebe, sente, cria, recria e se potencializa enquanto Comissão de Frente, finalizando o ciclo carnavalesco com a apresentação de seu trabalho, na passarela do samba, atingindo o público que absorve esta força e a transborda em gritos, aplausos e lágrimas.

Bibliografia:
ASANTE, Kariamu Welsh – Commonalities in African Dance: an Aesthetic Foundation. In ASANTE, Molefi Keti & ASANTE, Kariamu Welsh – African Culture: the Rhythms of Unity.
Trenton: Africa World Press, 1996.

CARLSON, Marvin – Performance: a critical introduction. London and New York: Routledge, 1999

VON  SIMSON,  Olga  R.  de  Moraes  –  Carnaval  em  Branco  e Negro. Carnaval  Popular Paulistano: 1914-1988. Campinas: Editora UNICAMP; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. 389p

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